domingo, 24 de outubro de 2010

Salve sua alma


          Seus dedos disparavam nas cordas de seu violão azul. Seus olhos azuis; azuis como daqueles de lata de tinta. Cílios tão gigantescos que poderiam ser comparados à cílios postiços. Sua pele era tão branca que alguns até chegavam a se perguntar se ela banhava-se com giz de cera. Suas sardas impossivelmente encantadoras fazia brotar os mais doces pensamentos. Sua boa rosa alaranjada era tão inebriante que todos perguntavam-se qual o segredo de sua beleza. Uma garota tão linda... Deixava corações apaixonados por onde passava. Mas ninguém a enxergava. Ninguém. Ninguém enxergava, ninguém parava para olhá-la realmente. Ninguém parava para pensar o escondia-se atrás da nuvem negra de seus olhos.
          Oh, garota, salve sua alma.

sábado, 2 de outubro de 2010

Sozinha

          Sozinha. Sim, sozinha. Aqui quero fixar o meu eterno repouso. A cama aconchegante não me aconchega mais. Os lençós não estão mais quentes. O melhor esconderijo não me esconde mais. As palavras estão vazias. O amor já não existe mais. Então, achas que devo importar-me? Não, não devo. Porque me importaria? Apenas pelo fato de que saí de teu ventre, mulher?
          "Sangue do meu sangue". Oh, falas como se isto fosse algo bom. Ao contrário, o nojo me corrói por dentro como um jato de lava num ferro indefeso, apenas por saber que o que sai da tua boca suja é a mais pura verdade. Sim, saí de teu ventre. Mas, e daí? Você não passa de uma parasita. Uma parasita tentando sugar o último vintém de meu pai. Perdão? Achas que você merece o meu perdão? Não se preocupe tanto, pois não vai ter.
Cada gotícula de meu sangue ferve freneticamente rápido, apenas pelo toque de sua mão. Me causas tanta repulsa que chega à doer. Dinheiro? Para quê queres dinheiro hoje, mamãe? Para beber? Porque não para de beber? Porque não para de chegar todo dia em casa bêbada e querendo me espancar? Não vê que isto só me machuca? Não vê que estou sofrendo? Não vê que a dor de que falo não é dos espancamentos, mas sim da solidão? Sim, a solidão que me aprisionastes! Porque fez isto comigo, mamãe? Porque me abandonou? Eu era uma simples criança... Mas você! Oh, você fez questão de me destruir!
          Você sempre fala para eu estudar e ter um futuro decente. E, tudo isso para quê? Para você pendurar-se em mim e me sugar como sempre fez com o meu pai? Você não fará isto de novo comigo, mamãe. Não mais.
          E eu só quero que você saiba que cada minuto do meu tempo, cada trabalho de escola feito, cada noite sem dormir para estudar, é para que eu um dia saia deste inferno e lhe deixe sozinha, completamente abandonada. E aí, quando todos lhe abandonarem, você vai ver que eu... que eu fui a única que um dia lhe amou de verdade.
 

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Apenas Respire

          Há uma pequena janela ao lado. Está amanhecendo. Ainda não posso ver o majestoso Sol; ele ainda está atrás das nuvens cinzas e obscuras que me cercaram, como um polvo cerca a sua presa. O que há trás delas? Porque não consigo enxergar? Poças d'água se abrigam sob meus olhos. Fecho os olhos para que nenhuma gota escape de onde deve estar. Mas é tarde demais. Um dilúvio já se faz em minhas bochechas pálidas e frias. As lágrimas fazem cócegas, quase posso sorrir. Quase. Sempre quase. E então...? Achas se algum dia tudo isso irá acabar? Temo que não. Não, não. Não irá. O 'felizes para sempre' não existe. É só uma jogada de marketing para os filmes se tornarem perfeitos; diferente da vida real, lhes digo. Não sinto frio, nem calor. Acho que aprendi a me acostumar com os dois. Como fogo e gelo. Fria por dentro, quente por fora. Todas as suas tentativas de sair deste inferno será inútil, acredite. Pois quanto mais tentar sair, mais atolado ficarás. E quem sou eu...? Não pergunte-me isso. Eu não sei. É, não sei quem sou. Pode até parecer dramatismo, talvez seja, talvez não. Quem somos nós para julgar algo, hã? Pequenos mortais tolos. Não somos nada. Somos apenas um lixo tóxico pronto para assassinar alguém. Fisicamente, psicologicamente... Tanto faz. Não vai mudar nada, não é mesmo? E quando tudo parece perdido o que fazemos? Nós respiramos. Então... respire. Apenas respire.